Há muito tempo, em Roma, para
além da Porta Nomentana, erguia-se um amontado de míseros casebres, onde viviam
centenas de escravos foragidos, comediantes arruinados, mendigos, traficantes e
gladiadores estropiados, que pareciam mais ameaçadores com seus andrajos do que
os arrogantes vigias do Emporium com suas pesadas lanças rebrilhantes.
Aquele perigoso refúgio,
raramente visitados pelos agentes de César, era apelidado a “Pequena Salária”,
ou melhor “A Salária”.
Por entre as vielas sórdidas e
sombrias da Salária, um dos tipos mais populares era o velho Flaminius, o
Sereno. Pela manhã, muito cedo ainda, arrastando-se lentamente, deixava o seu
miserável tugúrio e dirigia-se para o pátio da Semita, em busca de sol, sob as
árvores ferrugentas.
Era um homem alto, magro, de
faces amortecidas e olhar distraído. A sua cabeleira, inteiramente branca,
sempre revolta, dava-lhe uma estranha aparência de profeta gaulês.
Usava, habitualmente, uma
espécie de túnica palmata, avermelhada, suja, esfarrapada, que mal lhe chegava
até os joelhos.
De que vivia? Onde ia buscar
recursos aquele ancião que não esmolava na Praça doMercado nem era visto a
tirar sortes nas escadarias dos templos?
Repontava aí a sombra de um
mistério, que o tempo jamais conseguiria esclarecer.
Garantiam alguns que o velho
Flaminius era amparado por um antigo senador, íntimo de Augusto, que ele
conhecera muitos anos antes, em Nápoles, quando trabalhava no porto, carregando
as galeras de Tibério.
E, na verdade, Flaminius, que
agora arrastava a sua triste decrepitude na Salária, tivera, em sua vida, um
período de prosperidade e alegria. Casara-se com uma camponesa da Sicília e
tivera dois filhos. Um deles — Cláudio, o Belo — fizera-se poeta. Tornara-se
popular na corte. As suas poesias eram declamadas pelos nobres e elogiadas pelo
imperador. Até os cônsules, altivos, com prestígio entre os senadores,
invejavam os triunfos do jovem Cláudio.
Flaminius orgulhava-se daquele filho,
que os seus “deuses” haviam cumulado de talento.
Mas Cláudio era ambicioso.
Ligou-se a um certo Marcus Lúcius, político sem escrúpulos, que Tibério
escolhera, no período mais agitado de seu governo, para pacificar uma província
grega. Lúcius partiu e levou o poeta. E, de Atenas, Cláudio jamais regressou.
O desaparecimento do filho amado
navalhou o coração de Flaminius. Abandonou o trabalho em Nápoles e passou a
viver em Roma, entre aventureiros da pior espécie, sem pão, sem conforto, sem
esperança. Sua esposa abandonou-o e partiu para a Espanha, com alguns parentes
ricos. O filho mais moço fez-se soldado e alistou-se nas legiões de César.
E no entanto, Flaminius, no meio
de tanta desgraça, sentia-se feliz.
As palavras, que ele ouvira de
um oráculo do Templo de Vesta, enchiam o seu coração de esperanças.
Passara-se o caso num dos
últimos dias de setembro, quando os fiéis traziam suas oferendas aos seus
“deuses”. Cruzava Flaminius o átrio do Templo, quando ouviu que o chamavam. Era
um dos oráculos. Trajava uma túnica branca, muito alva, vistosamente recamada
de franjas. Na manga direita, que se abria em leque, aparecia, desenhada, uma figura
estranha: dragão, esfinge, serpente ou coisa parecida.
— Não se lembras de mim, Flaminius?
O ancião aproximou-se, desconfiado. Surpreendia-a,
além do mais, o tom amistoso daquele profeta de olhos mortiços e rosto pálido.
— Quero recordar-te — prosseguiu o oráculo —
olhando fito no velho. Há vários anos passados (reinava Augusto), em Nápoles,
certa noite, socorreste um viajante que fôra assaltado no porto. Graças a teu
auxílio, ele conseguiu livrar-se do sicário. Esse viajante era precisamente eu.
Devo-te, portanto, a vida. Quero agora prestar-te igualmente um benefício.
Vou ler o teu futuro.
Flaminius parou diante do
oráculo. Cruzou os braços sobre o peito e aguardou impassível a terrível e
arrebatadora sentença. Curiosos que perambulavam entre as colunas, aproximaram-se
em silêncio.
— O teu nome será esquecido. A tua memória será
apagada por completo e desaparecerá como as cinzas levadas pelo vento. Mas as
palavras admiráveis de teu filho jamais serão olvidadas. Milhões e milhões de
homens, no desenrolar dos séculos, repetirão por todos os recantos do mundo as
palavras de teu filho! Que júbilo, que glória imensa para o teu coração de pai!
Ao retornar ao seu casebre de
Salária, o velho Flaminius assim meditava:
— Vivi sempre obscuro; morrei esquecido e obscuro.
Não importa! Mas a glória perpetuará, sobre a terra, o nome de Cláudio, meu
filho. Os seus versos “adoráveis”, que César não se cansava de repetir, serão
lembrados pelos homens, no desenrolar dos séculos! E aquele êxito do filho
poeta trazia infinita alegria e tranqüilidade ao coração do velho romano.
— Que importa a pobreza em que vivo! Consola-me a
certeza de que meu filho Cláudio terá por prêmio a imortalidade!
E o velho Flaminius, a quem as
palavras do oráculo deram alento para resistir a todas as amarguras e
vicissitudes de sua negra existência, teve um fim trágico. Ao regressar, um dia,
de um visita ao templo de Júpiter, avistou, num recanto da praça Salutis, um
soldado espancando cruelmente uma pobre menina. O agressor, irritado com a
intervenção inesperada daquele desconhecido, não hesitou em atravessá-lo com
uma punhalada.
Flaminius pereceu heroicamente.
E no dia seguinte, um mendigo sem rumo, no seu andar bamboleante, avistou
casualmente a miserável mansarda em completo abandono na Salária. Apoderou-se
dela, atirou para ali seus troços, sem indagar do destino que levava o primitivo
dono.
E assim como previra o oráculo,
como a cinza que o vento espalha, apagou-se entre os homens a lembrança daquele
que fora em vida Flaminius, o Sereno.
Após a morte, viu Flaminius
surgir diante dele a figura radiosa de um Anjo.
— Flaminius — disse o Enviado de Deus, em tom
mavioso de paciência — a tua morte gloriosa mereceu-te uma recompensa no Céu.
Fala, meu bom amigo, e o Eterno ouvirá a tua voz.
— Nada fiz, estou certo, para merecer a menor
recompensa da misericórdia de Deus.
Confesso, porém, que tenho o
coração torturado por uma grande angústia. Gostaria de retornar ao mundo, no
fim de alguns séculos, a fim de verificar se os homens (conforme me garantiu o
oráculo) conservam, na memória, os versos de meu filho. Que indizível alegria
para mim certificar-me de que meu filho, por seu gênio incomparável, se tornou
imortal!
Deus, na sua infinita
misericórdia, atendeu ao pedido daquele pai. E, decorridos dezenove séculos,
Flaminius, conduzido por um Anjo, retornou a Roma.
Por todos os recantos da terra
erguiam-se cruzes. A religião que César havia desprezado, a princípio, e
perseguido mais tarde, vencera, afinal, e dominava o mundo.Flaminius, o Sereno,
guiado pelo Anjo, entrou num grande Templo cristão. Milhares de fiéis
achavam-se em oração; um jovem sacerdote, revestido de riquíssima paramenta, debruada
com fios de ouro, junto a um belíssimo altar, adorava o verdadeiro Deus, Jesus,
Nosso Senhor! Flaminius não cabia em si de deslumbramento! Tudo ali era para
ele motivo de indescritível assombro! E balbuciou muito humilde (e suas
palavras só eram ouvidas pelo Anjo):
— E os versos de meu filho? Poderei ouvi-los aqui,
neste Templo, cheio de cristãos, que erguem para o Céu as suas preces
lamuriantes?
— Sim — confirmou o Anjo — dentro de alguns
instantes! Rejubila-te! Todos os cristãos, aqui reunidos, repetirão as palavras
de teu filho!
Decorridos alguns minutos
cessaram os cânticos. Fez-se profundo silêncio. E o sacerdote, batendo no peito
três vezes, suplicou cheio de humildade e confiança:
— Domine, non sum dignos ut intres sub tectum
meum...
(Senhor, eu não sou digno de que
entreis em minha casa...)
— Eis aí — acudiu o Anjo — Acabaste de ouvir!
Foram estas palavras proferidas, há muitos séculos por teu filho e, até hoje,
os homens as repetem diante de Deus! Sinto dizer-te, porém, que não são versos
de Cláudio, o poeta; são simples palavras proferidas por Marcelo, teu filho
mais moço... Flaminius quedou um momento perplexo e replicou, esboçando um
sorriso pálido:
— Aquele que se fez soldado?
— Sim — confirmou o Anjo, num tom de absoluta
confiança — aquele que se alistou nas legiões de César! Marcelo era um homem
bom e caridoso: apiedava-se dos sofrimentos alheios; socorria os pobres;
consolava os aflitos. Quando servia às ordens de Herodes, tetrarca da Galiléia,
um dos seus servos adoeceu com uma grave paralisia. Marcelo, neste tempo, fora promovido;
já era centurião. E todos os homens de sua centúria o estimavam.
Inspirado pela delicadeza de sua
sensibilidade, cuidou Marcelo de acudir, com desvelo, ao servo enfermo. Todos
os remédios, aconselhados por amigos e vizinhos, ele experimentava, sem
resultado. Alguém sugeriu:
— Chefe! Por que não apelas para Jesus de Nazaré?
Dizem que o Rabi faz milagres!
Marcelo era puro de coração e,
muito embora fosse romano, acreditava naquele Rabi, cheio de simplicidade e
candura, que sorria para as crianças e curava os enfermos com o simples
estender suave de suas divinas mãos.
Não se atreveu, porém a ir
procurar Jesus e pediu a alguns israelitas, fossem em busca do Mestre, de cujo
amparo o infeliz servo tanto necessitava.
Jesus, Nosso Senhor, com seus
discípulos, dirigiam-se para Cafarnaum, quando recebeu o pedido de dois
anciãos, amigos de Marcelo. E disse aos que o acompanhavam:
— Irei até lá!
Quando o centurião romano foi
informado de que Jesus de Nazaré, em Pessoa, se dirigia para a sua morada,
levantou-se imediatamente a passos rápidos, seguido de alguns ajudantes e
servos e foi ter, muito respeitoso, ao encontro do Mestre. E disse-lhe, com
extrema humildade:
— Senhor! Eu não sou digno de que entreis na minha morada! (Domine, non sum dignus...) Basta que digais uma só palavra e, estou certo, meu servo estará para sempre curado!
E, como Cristo o fitasse
surpreendido, ajuntou:
— Porque eu, Senhor, sou militar e sei muito bem o
que é obedecer e o que é mandar!
Estou sujeito à autoridade de
meus chefes, e tenho soldados às minhas ordens! Digo a um:“Vai!” E ele segue o
rumo que indiquei. Digo a outro: “Vem cá!” E ele se aproxima de mim!
Basta, pois, Senhor, uma só
palavra Vossa, e meu servo será salvo.
Ouvindo isto, Jesus se admirou;
e, voltando-se para o povo que o seguia, disse:
— Em verdade, em verdade eu vos digo que nem em
Israel achei tão grande fé.
E disse ao bom centurião:
— Vai, e faça-se como tu crês!
E, naquela mesma hora, ficou
curado o servo!Que restam dos versos famosos de Cláudio, o festejado poeta?
Não! Os homens não se lembram mais das odes admiráveis que César elogiava e que
os comediantes mais ilustres declamavam nos festins romanos.
Mas as palavras do bom-soldado
são repetidas todos os dias, com profunda veneração, por milhares de lábios
humildes!
— E por quê?
— Porque as palavras do poeta eram despidas de
sinceridade, ao passo que as palavras do soldado foram proferidas com fé!
Escuta, meu filho, as palavras
ditas com fé, para a salvação de uma alma, ficarão na lembrança dos homens per
omnia saecula saeculorum!
Glória a Deus! Glória a Deus no
mais alto dos Céus e paz, na terra, aos homens de boa vontade! Amém!
Fonte: Malba Tahan, Novas Lendas Orientais. Com
adaptações.
Um comentário:
Linda história de Malba Tahan, professor carioca, mais conhecido pela sua principal obra "O homem que calculava". História que me lembra muito o meu pai militar em Belo Horizonte nos anos 70 e 80.
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