quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Senhor, eu não sou digno


Há muito tempo, em Roma, para além da Porta Nomentana, erguia-se um amontado de míseros casebres, onde viviam centenas de escravos foragidos, comediantes arruinados, mendigos, traficantes e gladiadores estropiados, que pareciam mais ameaçadores com seus andrajos do que os arrogantes vigias do Emporium com suas pesadas lanças rebrilhantes.
Aquele perigoso refúgio, raramente visitados pelos agentes de César, era apelidado a “Pequena Salária”, ou melhor “A Salária”.
Por entre as vielas sórdidas e sombrias da Salária, um dos tipos mais populares era o velho Flaminius, o Sereno. Pela manhã, muito cedo ainda, arrastando-se lentamente, deixava o seu miserável tugúrio e dirigia-se para o pátio da Semita, em busca de sol, sob as árvores ferrugentas.
Era um homem alto, magro, de faces amortecidas e olhar distraído. A sua cabeleira, inteiramente branca, sempre revolta, dava-lhe uma estranha aparência de profeta gaulês.
Usava, habitualmente, uma espécie de túnica palmata, avermelhada, suja, esfarrapada, que mal lhe chegava até os joelhos.
De que vivia? Onde ia buscar recursos aquele ancião que não esmolava na Praça doMercado nem era visto a tirar sortes nas escadarias dos templos?
Repontava aí a sombra de um mistério, que o tempo jamais conseguiria esclarecer.
Garantiam alguns que o velho Flaminius era amparado por um antigo senador, íntimo de Augusto, que ele conhecera muitos anos antes, em Nápoles, quando trabalhava no porto, carregando as galeras de Tibério.
E, na verdade, Flaminius, que agora arrastava a sua triste decrepitude na Salária, tivera, em sua vida, um período de prosperidade e alegria. Casara-se com uma camponesa da Sicília e tivera dois filhos. Um deles — Cláudio, o Belo — fizera-se poeta. Tornara-se popular na corte. As suas poesias eram declamadas pelos nobres e elogiadas pelo imperador. Até os cônsules, altivos, com prestígio entre os senadores, invejavam os triunfos do jovem Cláudio.
Flaminius orgulhava-se daquele filho, que os seus “deuses” haviam cumulado de talento.
Mas Cláudio era ambicioso. Ligou-se a um certo Marcus Lúcius, político sem escrúpulos, que Tibério escolhera, no período mais agitado de seu governo, para pacificar uma província grega. Lúcius partiu e levou o poeta. E, de Atenas, Cláudio jamais regressou.
O desaparecimento do filho amado navalhou o coração de Flaminius. Abandonou o trabalho em Nápoles e passou a viver em Roma, entre aventureiros da pior espécie, sem pão, sem conforto, sem esperança. Sua esposa abandonou-o e partiu para a Espanha, com alguns parentes ricos. O filho mais moço fez-se soldado e alistou-se nas legiões de César.
E no entanto, Flaminius, no meio de tanta desgraça, sentia-se feliz.
As palavras, que ele ouvira de um oráculo do Templo de Vesta, enchiam o seu coração de esperanças.
Passara-se o caso num dos últimos dias de setembro, quando os fiéis traziam suas oferendas aos seus “deuses”. Cruzava Flaminius o átrio do Templo, quando ouviu que o chamavam. Era um dos oráculos. Trajava uma túnica branca, muito alva, vistosamente recamada de franjas. Na manga direita, que se abria em leque, aparecia, desenhada, uma figura estranha: dragão, esfinge, serpente ou coisa parecida.
— Não se lembras de mim, Flaminius?
O ancião aproximou-se, desconfiado. Surpreendia-a, além do mais, o tom amistoso daquele profeta de olhos mortiços e rosto pálido.
— Quero recordar-te — prosseguiu o oráculo — olhando fito no velho. Há vários anos passados (reinava Augusto), em Nápoles, certa noite, socorreste um viajante que fôra assaltado no porto. Graças a teu auxílio, ele conseguiu livrar-se do sicário. Esse viajante era precisamente eu. Devo-te, portanto, a vida. Quero agora prestar-te igualmente um benefício.
Vou ler o teu futuro.
Flaminius parou diante do oráculo. Cruzou os braços sobre o peito e aguardou impassível a terrível e arrebatadora sentença. Curiosos que perambulavam entre as colunas, aproximaram-se em silêncio.
— O teu nome será esquecido. A tua memória será apagada por completo e desaparecerá como as cinzas levadas pelo vento. Mas as palavras admiráveis de teu filho jamais serão olvidadas. Milhões e milhões de homens, no desenrolar dos séculos, repetirão por todos os recantos do mundo as palavras de teu filho! Que júbilo, que glória imensa para o teu coração de pai!
Ao retornar ao seu casebre de Salária, o velho Flaminius assim meditava:
— Vivi sempre obscuro; morrei esquecido e obscuro. Não importa! Mas a glória perpetuará, sobre a terra, o nome de Cláudio, meu filho. Os seus versos “adoráveis”, que César não se cansava de repetir, serão lembrados pelos homens, no desenrolar dos séculos! E aquele êxito do filho poeta trazia infinita alegria e tranqüilidade ao coração do velho romano.
— Que importa a pobreza em que vivo! Consola-me a certeza de que meu filho Cláudio terá por prêmio a imortalidade!
E o velho Flaminius, a quem as palavras do oráculo deram alento para resistir a todas as amarguras e vicissitudes de sua negra existência, teve um fim trágico. Ao regressar, um dia, de um visita ao templo de Júpiter, avistou, num recanto da praça Salutis, um soldado espancando cruelmente uma pobre menina. O agressor, irritado com a intervenção inesperada daquele desconhecido, não hesitou em atravessá-lo com uma punhalada.
Flaminius pereceu heroicamente. E no dia seguinte, um mendigo sem rumo, no seu andar bamboleante, avistou casualmente a miserável mansarda em completo abandono na Salária. Apoderou-se dela, atirou para ali seus troços, sem indagar do destino que levava o primitivo dono.
E assim como previra o oráculo, como a cinza que o vento espalha, apagou-se entre os homens a lembrança daquele que fora em vida Flaminius, o Sereno.
Após a morte, viu Flaminius surgir diante dele a figura radiosa de um Anjo.
— Flaminius — disse o Enviado de Deus, em tom mavioso de paciência — a tua morte gloriosa mereceu-te uma recompensa no Céu. Fala, meu bom amigo, e o Eterno ouvirá a tua voz.
— Nada fiz, estou certo, para merecer a menor recompensa da misericórdia de Deus.
Confesso, porém, que tenho o coração torturado por uma grande angústia. Gostaria de retornar ao mundo, no fim de alguns séculos, a fim de verificar se os homens (conforme me garantiu o oráculo) conservam, na memória, os versos de meu filho. Que indizível alegria para mim certificar-me de que meu filho, por seu gênio incomparável, se tornou imortal!
Deus, na sua infinita misericórdia, atendeu ao pedido daquele pai. E, decorridos dezenove séculos, Flaminius, conduzido por um Anjo, retornou a Roma.
Por todos os recantos da terra erguiam-se cruzes. A religião que César havia desprezado, a princípio, e perseguido mais tarde, vencera, afinal, e dominava o mundo.Flaminius, o Sereno, guiado pelo Anjo, entrou num grande Templo cristão. Milhares de fiéis achavam-se em oração; um jovem sacerdote, revestido de riquíssima paramenta, debruada com fios de ouro, junto a um belíssimo altar, adorava o verdadeiro Deus, Jesus, Nosso Senhor! Flaminius não cabia em si de deslumbramento! Tudo ali era para ele motivo de indescritível assombro! E balbuciou muito humilde (e suas palavras só eram ouvidas pelo Anjo):
— E os versos de meu filho? Poderei ouvi-los aqui, neste Templo, cheio de cristãos, que erguem para o Céu as suas preces lamuriantes?
— Sim — confirmou o Anjo — dentro de alguns instantes! Rejubila-te! Todos os cristãos, aqui reunidos, repetirão as palavras de teu filho!
Decorridos alguns minutos cessaram os cânticos. Fez-se profundo silêncio. E o sacerdote, batendo no peito três vezes, suplicou cheio de humildade e confiança:

— Domine, non sum dignos ut intres sub tectum meum...
(Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa...)

— Eis aí — acudiu o Anjo — Acabaste de ouvir! Foram estas palavras proferidas, há muitos séculos por teu filho e, até hoje, os homens as repetem diante de Deus! Sinto dizer-te, porém, que não são versos de Cláudio, o poeta; são simples palavras proferidas por Marcelo, teu filho mais moço... Flaminius quedou um momento perplexo e replicou, esboçando um sorriso pálido:
— Aquele que se fez soldado?
— Sim — confirmou o Anjo, num tom de absoluta confiança — aquele que se alistou nas legiões de César! Marcelo era um homem bom e caridoso: apiedava-se dos sofrimentos alheios; socorria os pobres; consolava os aflitos. Quando servia às ordens de Herodes, tetrarca da Galiléia, um dos seus servos adoeceu com uma grave paralisia. Marcelo, neste tempo, fora promovido; já era centurião. E todos os homens de sua centúria o estimavam.
Inspirado pela delicadeza de sua sensibilidade, cuidou Marcelo de acudir, com desvelo, ao servo enfermo. Todos os remédios, aconselhados por amigos e vizinhos, ele experimentava, sem resultado. Alguém sugeriu:
— Chefe! Por que não apelas para Jesus de Nazaré? Dizem que o Rabi faz milagres!
Marcelo era puro de coração e, muito embora fosse romano, acreditava naquele Rabi, cheio de simplicidade e candura, que sorria para as crianças e curava os enfermos com o simples estender suave de suas divinas mãos.
Não se atreveu, porém a ir procurar Jesus e pediu a alguns israelitas, fossem em busca do Mestre, de cujo amparo o infeliz servo tanto necessitava.
Jesus, Nosso Senhor, com seus discípulos, dirigiam-se para Cafarnaum, quando recebeu o pedido de dois anciãos, amigos de Marcelo. E disse aos que o acompanhavam:
— Irei até lá!
Quando o centurião romano foi informado de que Jesus de Nazaré, em Pessoa, se dirigia para a sua morada, levantou-se imediatamente a passos rápidos, seguido de alguns ajudantes e servos e foi ter, muito respeitoso, ao encontro do Mestre. E disse-lhe, com extrema humildade:


— Senhor! Eu não sou digno de que entreis na minha morada! (Domine, non sum dignus...) Basta que digais uma só palavra e, estou certo, meu servo estará para sempre curado!
E, como Cristo o fitasse surpreendido, ajuntou:
— Porque eu, Senhor, sou militar e sei muito bem o que é obedecer e o que é mandar!
Estou sujeito à autoridade de meus chefes, e tenho soldados às minhas ordens! Digo a um:“Vai!” E ele segue o rumo que indiquei. Digo a outro: “Vem cá!” E ele se aproxima de mim!
Basta, pois, Senhor, uma só palavra Vossa, e meu servo será salvo.
Ouvindo isto, Jesus se admirou; e, voltando-se para o povo que o seguia, disse:
— Em verdade, em verdade eu vos digo que nem em Israel achei tão grande fé.
E disse ao bom centurião:
— Vai, e faça-se como tu crês!
E, naquela mesma hora, ficou curado o servo!Que restam dos versos famosos de Cláudio, o festejado poeta? Não! Os homens não se lembram mais das odes admiráveis que César elogiava e que os comediantes mais ilustres declamavam nos festins romanos.
Mas as palavras do bom-soldado são repetidas todos os dias, com profunda veneração, por milhares de lábios humildes!
— E por quê?
— Porque as palavras do poeta eram despidas de sinceridade, ao passo que as palavras do soldado foram proferidas com fé!
Escuta, meu filho, as palavras ditas com fé, para a salvação de uma alma, ficarão na lembrança dos homens per omnia saecula saeculorum!
Glória a Deus! Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz, na terra, aos homens de boa vontade! Amém!

Fonte: Malba Tahan, Novas Lendas Orientais. Com adaptações.

Um comentário:

Leonardo disse...

Linda história de Malba Tahan, professor carioca, mais conhecido pela sua principal obra "O homem que calculava". História que me lembra muito o meu pai militar em Belo Horizonte nos anos 70 e 80.