Vida do Padre José Coudrin
Paris, 4 de março de 1792. A capela do seminário irlandês está ocupada por jacobinos. O santuário há meses está transformado em clube. Os “heróis” da revolução, sentados diante do altar, de gorros vermelhos, arremessam cartas de jogar sobre a mesa sagrada da comunhão e agitam os copos com os dados. Furiosos e vociferando pragas, passam as cédulas de dinheiro de mão em mão. Origina-se uma contenda. Desembainham os punhais. Um bêbado cambaleia por entre os altercantes. Na mão vacilante tem um cálice sagrado que contém aguardente. A um canto está um indivíduo acocorado, com um arenque numa patena.
- Comportai-vos, cidadãos! Comportai-vos! Balbucia o embriagado.
Não alterqueis por causa de dinheiro. Ainda há que chega a Paris. Cantai! Cantai cidadãos! E com voz animalesca, berra:
- Ah, ça ira, ça ira, ça ira! ...
Todos entram em côro. A matinada que levantam faz estremecer os vitrais da capela com os seus santos.
- A, ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates à la lanterne! (À forca os aristocratas!).
Enquanto esta cena se passa, na biblioteca da mesma casa está ajoelhado, aos pés do Bispo preso, um jovem com vestes seculares.
No silêncio, o venerando Príncipe eclesiástico impõe-lhe as mãos trêmulas. De leve se movem os seus lábios em oração fervorosa. Em seguida, toma as mãos do recém ungido sacerdote e pergunta com voz trêmula: - Prometes-me a mim e a meus sucessores reverência e obediência?
- Prometo! Responde o ordenado com voz firme.
O Bispo inclina-se então para ele e dá· lhe um ósculo na testa, proferindo as palavras: A paz do Senhor esteja sempre contigo!
Da capela ecoam gritos esganiçados e infernais: - Ah, ça ira, ça ira, ç"a, ira! Les aristocrates à la lanterne! Les prêtres à la lanterne!
- À forca os sacerdotes! Ruge uma voz de permeio e todo o bando repete aos gritos e gargalhadas: - Les prêtres à la lanterne!
- A paz do Senhor seja sempre contigo diz mais urna vez o Bispo. O neo-sacerdote responde: Amém!
Em seguida, o Bispo fá-lo levantar-se, dizendo-lhe: - José Coudrin, foste ordenado à borda do inferno!
- E, contudo, temos aqui o Céu, volve o sacerdote; e eram sinceras as suas palavras.
- A forca os padres! Uiva a corja de embriagados.
Meio ano mais tarde, as ruas de Paris tingem-se de rubro com o sangue dos mártires. Em França, o inferno está solto. A guilhotina escolhe as suas vítimas de quase todas as aldeias. Como animais, farejam os sacerdotes e arrastam-nos ao cadafalso.
Atrás de um destes, os esbirros e patriotas dão caça especial; invisível, nunca se deixa apanhar e sempre de novo surge por toda parte, nas cidades e aldeias das Dioceses de Tours e Poitiers.
Lá vai andrajoso mendigo pela estrada da aldeia. Em cada porta, estende a mão, pedindo esmolas. Por vezes lhe é concedida a entrada, e, momentos depois, ele profere as palavras da absolvição junto a um moribundo, administrando-lhe os Santos Óleos.
Na praça do mercado ergue-se a guilhotina, que projeta longas e negras sombras sobre a terra. Junto da guilhotina se acha um soldado, que lê um manifesto pregado ao poste dela: "Mil francos de gratificação para aquele que denunciar ao tribunal revolucionário o sacerdote Pe. José Coudrin. Patriotas, cumpri o vosso dever. À forca o sedutor do povo!" Aproxima-se um segundo soldado.
- Boa soma essa, mil Francos! Murmurou o primeiro. Isso eu gostaria de ganhar.
- Tens razão, camarada, concordou o segundo.
- O carrasco saberá onde está escondido o padre.
- Precisamente não o sabe, disse, brusco, o primeiro.
- Como? Ah! Sim! Tens razão, camarada!
E cada qual seguiu o seu caminho. O segundo entrou numa taverna, o primeiro numa casa qualquer, perto do mercado. Breve sua mão benfazeja derramava água batismal sobre a fronte de uma criança. Mais uma vez escapou à guilhotina. Mas algum rasto os esbirros sempre tinham, e, aonde quer que se dirigisse o sacerdote, ameaçava-o a guilhotina.
Um vendilhão vai de casa em casa com uma cesta cheia de ratoeiras.
Nas casas onde entra, depõe as bugigangas, tira do bolso sobre o peito uma patena brilhante e diz: "Ecce Agnus Dei! Eis o Cordeiro de Deus". Reverentes, os homens ajoelham-se e recebem o Pão dos fortes.
José Coudrin, o sacerdote, continua caminhando à sombra da guilhotina. Certa vez, descobrem lhe o rasto. Cercam a casa em que se acha. O sacerdote refugia-se, subindo uma escada, num quarto escondido, situado mais alto. Os revolucionários penetram na casa. Um deles descobre a escada. Já punha o pé no primeiro degrau, quando seu camarada o chamou:
- Cidadão, és um macaco. Julgas que ele teria deixado a escada se tivesse subido por aí?
Momentos depois, os perseguidores, que passam revista em toda a casa, até nos últimos recantos, retiram-se.
Em Paris todos os demônios andam soltos. A cabeça do Rei rola no pó. A Rainha sobe ao cadafalso. Por toda parte se degolam sacerdotes. As igrejas são profanadas. O sacerdote José Coudrin, entretanto, continua andando a sombra da guilhotina. Muitas vezes, precisa descansar durante o dia em cavernas, paióis e touceiras. Não raro, só de noite pode realizar as suas visitas. Os patriotas de Poitiers já o condenam à morte em sessão judicial. Falta, porém, o acusado. De novo pensam tê-lo seguro. Os esbirros já tiram a sorte com colmos de capim a ver quem dentre eles o deveria conduzir à guilhotina. Mais uma vez, porém, Coudrin lhes escapa.
Até nos cárceres penetra, e, confundido com os presos, celebra a Santa Missa, ministrando-lhes o Santo Viático. Ainda desta vez consegue subtrair-se aos seus inimigos. Mas anda sempre à sombra da guilhotina. Os “heróis” da revolução apunhalam-se uns aos outros. Um monstro devora outro. Chega o tempo do Diretório.
Vêm os dias do Bonaparte. Passa o tempo dos horrores. A Igreja ressurge das catacumbas [pensam os ingênuos]. A guilhotina não chegou a pegar José Coudrin.
Seguem-se, contudo, novas e graves perseguições. Napoleão, o corso, engana a Igreja. O Papa é feito prisioneiro em Fontainebleau.
Mas, num recanto de França, o sacerdote José Coudrin levanta altaneiro nova bandeira, que leva como sagrado símbolo os Corações de Cristo e da Mãe de Deus, Corações esses que receberam indizíveis opróbrios nos dias dos jacobinos, Corações a que os mártires se consagravam no patíbulo da morte. E o derradeiro grito das vítimas: Viva o Sagrado Coração de Jesus! Tornou-se um brado de combate.
José Coudrin funda a Ordem dos Sagrados Corações. A Condessa Henriette Aymer de Ia Chevalerie funda, sob o mesmo nome, uma congregação para mulheres. Também ela passava pelo inferno da revolução, chegando a conhecer de perto os horrores da prisão, em que a todo o momento esperava o carro fatal, até que, por fim, a morte de Robespierre lhe abriu a porta da liberdade.
Homens agrupavam-se, decididos a tentar o extremo, possuídos daquele mesmo ardor indômito que enchia o sacerdote que vagava pela França à sombra da guilhotina. Brancas eram as suas vestes. Um manto como o dos Cavaleiros do Sepulcro descia-Ihes dos ombros. Sobre o peito traziam a divisa - os Sagrados Corações, cercados da Coroa de Espinhos e de chamas. Nos dias do terror, todo aquele que trouxesse tal imagem era levado ao cadafalso. Em culto blasfemo, os jacobinos veneravam o coração de Marat para escarnecer do Coração de Jesus. Agora era chegado o tempo da reparação. Reparações queriam prestar os homens e mulheres da nova congregação. Reparação pelas igrejas profanadas, pelos altares derrubados, pelos cálices calcados aos pés e pelas Hóstias profanadas. Aonde chegavam os sacerdotes e irmãos de hábito branco, acendiam-se novamente as velas do Tabernáculo; ali Cristo, em ostensório precioso, sobe novamente ao trono mais alto. Lá não se apaga a chama eucarística da Hora Santa.
No centro de Paris, na Rua Picpus, pulsa o coração da nova grei. Lá está a casa-mãe. É o lugar onde se acham sepultadas as 1307 vítimas de junho de 1794, executadas na Barriere du Trône. Sobre as catacumbas dos mártires queima novamente a chama da caridade e do sacrifício. A toda parte envia José Coudrin a sua milícia branca. Onde quer que a indigência e a miséria clamem por auxílio, pode-se encontrá-la, e, de fato, após os anos do terror, não é preciso procurá-Ia, pois em todas as ruas e caminhos de França se encontra a miséria. Mas por toda parte também se curvam, cheios de compaixão, os samaritanos, enquanto a misericórdia traça o seu caminho ao encalço da miséria. A caridade palmilha as ruas pelas quais se esgueiravam o terror e o desespero.
Crianças andrajosas e abandonadas, que já não sabem benzer-se, encontram mestres carinhosos. Os asilos e as escolas que a chama da revolução reduziu a cinzas são reconstruídos. De povoado em povoado, vão os padres. Em muitas igrejas pregam, prescrevem exercícios espirituais e missões. Vida nova e forte surge dos abismos. Um homem, porém, nem agora encontra descanso. Também nesses anos é insultado, escarnecido, perseguido, expulso de cidade em cidade o grande sacerdote que não temeu os revolucionários, que também não se curva ante o conquistador - José Coudrin, o caminhante à sombra da guilhotina.
O grande [sic!!!] imperador [sic!!!, refere-se a napoleão] passa pelo mundo. Por toda parte marcham os seus exércitos e tremulam as suas bandeiras. Outro personagem, porém, envia os seus soldados muito mais longe que Napoleão os seus exércitos. Também ele é conquistador. Para Coudrin as fronteiras da França são estreitas demais. A maldade no Velho Mundo é demasiada. Dirige o seu olhar para novas terras. Envia os seus discípulos através de todos os mares.
No arquipélago de Havaí, na ilha abandonada da Páscoa, em todas as ilhas do Mar do Sul, implantam o sinal de campanha do Grande Rei. Na América do Sul, no Chile e no Peru pregam esses arautos de Deus o do Evangelho.
Também os soldados da paz vertem o seu sangue. Sangue de mártires derrama-se em todo o mundo. O Padre Aleixo Bachelot é escorraçado das ilhas de Sandwiche. O Padre Claro Fouqué é apunhalado nas ilhas Tuamoto.
No arquipélago do Marechal, dão suas vidas por Cristo um Bispo, sete padres e dez irmãos. Um vagalhão arrebata o Padre Paulo Terlyn do altar onde estava dizendo Missa sobre uma ilha baixa. O vasto oceano tornou-se a sua sepultura, mas todo o rebanho pelo qual o sacerdote reza à vista da morte fica ileso.
Meus filhos serão sempre filhos da Cruz, disse uma vez José Coudrin.
Em toda parte, pelo mundo afora, esta profecia se está realizando. Sobre os túmulos dos mártires levanta-se o reino do Rei eterno. Houve conquistadores que sobre o sangue dos trucidados, sobre montes de caveiras erigiram o seu trono. A tempestade da história varreu-os. O Reino de Deus, que nasceu do Sangue de Cristo e dos seus mártires, é invencível.
Após longo exílio, volta José Coudrin em 1833 para a casa-mãe na Rua Picpus. Aqui o perseguido sem tréguas, o caluniado caminhante à sombra da guilhotina, encontra, após três anos, morte tranquila. O semblante do moribundo encrespa-se num sorriso. Como dissera o Bispo no dia da sua ordenação no seminário irlandês?
- A paz do Senhor seja sempre contigo!
Da capela gritavam então os jacobinos - À forca os sacerdotes! Agora, enfim, tinha a paz, a última e grande paz, para morrer. A primeira luz primaveril espalhava-se sobre os tetos de Paris, mandando um clarão para dentro da cela do convento. Eis que se desenha sobre a cama do doente uma grande cruz. É a sombra da cruz da janela. O doente vê-a. A sua mão mirrada estende-se para agarrar a sombra.
- À Cruz, fala com voz fraca: "Eu morro à sombra da Cruz!"
Ou serão mastro e verga que ali se desenham? Os pensamentos do moribundo transpõem o oceano, procurando os irmãos nas missões.
- Trazei-me um mapa, diz o superior geral. Algo hesitantes, os irmãos desdobram diante do moribundo um grande mapa-múndi. Os dedos brancos deslizam sobre os países e mares. Em alguns lugares se detém:
- Aqui estão os meus filhos e ali também! Senhor, tomai-os sob a vossa proteção!
E os dedos indicam novos países e mares. Erguendo-se um pouco no leito, o moribundo diz:
- A messe é grande, mas os ceifeiros são poucos! Pedi ao Senhor que mande operários para a sua messe.
A sombra da Cruz cai agora sobre o mapa. José Coudrin, pensativo, olha para ela:
- A Cruz se estende sobre todo o mundo, diz. Mas olhai o ponto em que os dois braços se cortam, onde estão as ilhas de Sandwich. A Cruz cai sobre o Mar do Sul.
Será que os seus cuidados mais uma vez querem aproximar-se do leito mortuário? Quererão roubar-lhe a paz da última hora os cuidados pela congregação? Será a sua obra duradoura? Onde estão os recrutas que cerrem fileiras sob a sua bandeira? Onde crescem os homens de que ele, o general moribundo, necessita? Homens com força indestrutível e valor a toda prova? Novamente deslizam os dedos do moribundo pelo mapa. Agora encontraram.
- Irmãos, chama o doente com voz prestes a extinguir-se. Vede cá, irmãos! Aí deveis construir um convento, em Flandres. Lá moram os homens por quem outrora São Francisco Xavier tanto clamava. Lá estão, os novos soldados.
Cansado, reclina-se para trás sobre os travesseiros. Em seguida, mais uma vez se ergue na cama. Sua voz soa não como o balbuciar de um moribundo, mas como a de um general em chefe que dá sua última ordem.
- Erigi um mosteiro em Flandres! É a minha última vontade. O rosto do moribundo ilumina-se.
- A paz de Deus seja convosco! Diz com voz muito sumida e com um sorriso.
A paz de Deus! Amém!
Os irmãos de ordem fecham-lhe os olhos para o sono eterno. A sombra da janela avançou mais, desenhando um retângulo bem definido sobre a coberta.
- Como uma guilhotina, dizem entre si os irmãos.
Três anos após a sua morte, em 1840, a congregação dos Sagrados Corações fundou um convento em Lovaina. A três de janeiro de 1859, dia do seu aniversário, José de Veuster [futuro São Damião] tocou a sineta na portaria desse claustro.
Fonte: Wilhelm Huenermann, "Vida de São Damião". Tradução de Aloysio Sehnem, SJ. Trecho sobre a vida do Padre José Coudrin, Fundador da Ordem à qual pertence São Damião de Veuster. Com pequenas adaptações.
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