quinta-feira, 1 de setembro de 2011

As formigas do Maranhão


Conta o Pe. Manuel Bernardes, clássico escritor jesuíta, num antigo e castiço português, que no Maranhão, no começo de nossa colonização, ocorreu um caso muito curioso de que as formigas, que eram muitas, grandes, e daninhas, para estenderem o seu Reino subterrâneo, e ensancharem os seus celeiros; de tal sorte minaram a despensa dos frades, afastando a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava próxima ruína. E acrescentando delito a delito, furtavam a farinha de pão, que ali estava guardada para cotidiano abasto da Comunidade.
Como as turmas do inimigo eram tão bastas, e incansáveis a toda a hora do dia e da noite, vieram os religiosos a padecer falta e a buscar-lhe o remédio, e não aproveitando alguns, de que fizeram experiência, porque enfim a concórdia na multidão a torna insuperável; ultimamente, por instinto superior (ao que se pode crer), saiu um religioso com este arbítrio: que eles, revestindo-se daquele espírito de humildade e simplicidade, com que seu seráfico patriarca a todas as criaturas chamava irmãs; irmão Sol, irmão lobo, irmã Andorinha etc, pusessem demanda àquelas irmãs formigas, perante o Tribunal da Divina Providência; e sinalassem Procuradores assim por parte deles autores, como delas réus, e o seu Prelado fosse o juiz, que em nome da Suprema Eqüidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa.
      Agradou a traça; e isto assim disposto, deu o procurados dos Padres Piedosos libelo contra as formigas e contestada por parte delas a demanda, veio articulando; que eles, autores, conformando-se com o seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho seu pelas roças daquele país; e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao do Evangelho e por isso aborrecido de seu Padre São Francisco, não faziam mais que roubá-los, e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a. E portanto dessem razão de si, ou quando não fossem todas mortas com algum ar pestilente, ou afogadas com alguma inundação, ou pelo menos exterminadas para sempre daquele distrito.
A isto veio contrariando o Procurador daquele negro e miúdo povo, e alegou por sua parte fielmente: “Em primeiro lugar: que elas uma vez recebido o benefício da vida pelo seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios, que o mesmo Senhor lhes ensinara.
Item: que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos das virtudes, que lhes mandara: a saber de prudência, acautelando os frutos e guardando para o tempo da necessidade... de diligência; ajuntando nesta vida merecimentos para a eterna... de caridade, ajudando umas às outras, quando a carga é maior que as forças.,.. e também de Religião e piedade, dando sepultura aos mortos de sua espécie como escreveu Plinio... e observou para sua doutrina o Monge Malco...
Item: que o trabalho, que elas punham na sua obra, era muito maior respectivamente, que o deles autores em ajuntar as esmolas; porque a carga muitas vezes era maior que o corpo e o ânimo que as forças.
Item: que suposto, que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas, e que a vantagem do seu grau racional harto se descontava, e abatia com haverem ofendido ao criador, não observando as regras da razão, como elas observavam as da natureza; pelo que se faziam indignos de que criatura alguma os servisse, e acomodasse; pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de deus por tantas vias, do que nelas furtarem sua farinha.
Item: que elas estavam de posse daquele sítio, antes deles autores fundarem; e portanto não deviam ser dele esbulhadas, e da força que se lhe fizesse, apelariam para a Coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos, como os grandes e a cada espécie deputou seu Anjo conservador. E ultimamente concluíram, que defendessem eles a sua casa e farinha pelos modos humanos que soubessem, porque isto lhes não tolhiam; porém que elas sem embargo haviam de continuar as suas diligências; pois do Senhor não deles era a terra e quanto ela cria: “Domini est terra, et plenitudo ejus” (Salmo XXIII, 1)
Sobre esta contrariedade houve réplicas, e contra-réplicas, de sorte que o Procurador dos Autores se viu apertado; porque uma vez deduzida a contenda ao simples foro de criaturas; e abstraindo razões contemplativas com espírito de humanidade, não estavam as formigas destituídas de direito. Pelo que o Juiz, vistos ou autos, e pondo-se com ânimo sincero na eqüidade, que lhe pareceu mais racionável, deu sentença que os Frades fossem obrigados a sinalar dentro da sua cerca sírio competente para vivenda das formigas e que elas, sob pena de excomunhão, mudassem logo de habitação, visto que ambas partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo; maiormente, porque eles Religiosos tinham vindo ali por obediência a semear o Grão Evangélico, e era digno o operário do seu sustento; e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio da sua indústria, a menos custo.
Lançada esta sentença, foi outro Religioso, de mandado do juiz, intimá-la em nome do Criador àquele povo em voz sensível nas bocas dos formigueiros. Caso maravilhoso e que mostra como se agradou deste requerimento Aquele Supremo Senhor de quem está escrito, que brinca com as suas criaturas: Ludens in orbe terrarum!
Imediatamente... saíram, a toda a pressa milhares de milhares daqueles animalejos, que formando longas e grossas fieiras, demandaram em direitura o sinalado campo, deixando as antigas moradas e livres de sua molestíssima opressão aqueles Santos Religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência!

Fonte: 
Pe. Manuel Bernardes
Nova Floresta
Volume I, Título IV (Anos, Idade, Tempo), L, Invectiva.

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